Teoria Pura do Direito. Hans Kelsen
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Teoria Pura do Direito. Hans Kelsen



TEORIA PURA DE HANS KELSEN: Logo no primeiro dia de aula da disciplina "Introdução à Ciência do Direito" deparei-me com uma obra cujo título pareceu-me sumamente estranho: Teoria pura do direito (TPD). Seu autor, um jurista tcheco - e não austríaco ou alemão, como muitos sustentam -, tinha sido o grande gênio do Direito no século XX, diziam-me alguns dos meus professores. Outros mestres preferiam ver em Kelsen uma espécie de espírito maléfico responsável por todas as incongruências da ciência jurídica. Para estes últimos, mais numerosos que os primeiros, a palavra "Kelsen" era sinônimo de "positivismo jurídico", vocábulo que, por sua vez, evocava em suas mentes tudo aquilo que há de mais estúpido, tolo e irreal no Direito. Desde o início, senti que estava entrando em uma briga feia. Era necessário tomar posição. Mas como eu, um mero aluno de Graduação, poderia concordar ou discordar de Kelsen, e mais ainda, dos meus próprios professores, que se polarizavam em dois grupos bem distintos...? O único remédio que encontrei foi a leitura da obra kelseniana, não me limitando, contudo, à TPD, já que Kelsen foi um autor prolífico, tendo publicado estudos nos mais variados âmbitos do conhecimento e se debruçado sobre pensadores tão inesperados para um jurista como Freud e Dante. Meu estudo sobre Kelsen estendeu-se por toda a Graduação. Acabei engajando-me em um grupo de pesquisa institucional que analisava a obra de alguns filósofos do direito. Eu escolhi Kelsen, teórico que também me acompanhou no Mestrado, quando produzi uma dissertação sobre a sua obra jusfilosófica, pouquíssimo conhecida no Brasil. E até hoje não parei de me surpreender com as teorias de Kelsen, tendo inclusive encontrado bons interlocutores para discutir seus aspectos polêmicos, como o professor Dr. Dimitri Dimoulis, um dos maiores especialistas em positivismo jurídico no Brasil. Esta rápida introdução, de caráter pessoal, tem por objetivo demonstrar ao desconsolado aluno que é possível conhecer e entender a obra de Kelsen. Para tanto, basta lê-la e não se deixar levar por meras opiniões, tanto as laudatórias como as acusatórias. Contudo, o aluno deve estar ciente de que Kelsen não é um autor fácil e que a TPD apresenta-se, nas palavras do seu criador, como um produto intelectual bastante abstrato e áspero. Nesse sentido, necessita-se de textos auxiliares para a leitura de Kelsen, tal e qual o presente artigo pretende ser. Ao se tomar contato com qualquer teoria, deve o estudante perguntar-se qual é o seu objetivo. O que pretendia Kelsen ao formular a TPD? Simples: definir o direito, descrevendo-o como uma ciência social e libertando-o de quaisquer laços ideológicos. Daí o qualificativo "pura", que se refere à teoria, e não ao direito. Não existe um "direito puro", e Kelsen sabia bem disso. É a teoria - ou seja, a descrição, o conhecimento - que deve sofrer a purificação metódica proposta por Kelsen. Até o início do século XX, o Direito compartilhava as suas preocupações teóricas com várias outras ciências, tais como a Política, a Ética, a Economia, a Psicologia etc. Somente a partir da TPD pôde-se falar em uma ciência propriamente jurídica, quer dizer, um conhecimento especificamente jurídico sobre o direito, que nada deve às demais ciências e se desenvolve de forma autônoma (não-sincrética) e livre das ingerências políticas. Para tanto, Kelsen indicou as características inconfundíveis do Direito: objeto formal próprio - as normas jurídicas - e método de estudo específico, chamado de normológico e consistente na descrição das normas jurídicas válidas mediante rigorosas proposições jurídicas. Kelsen adverte na primeira página da TPD que objetiva construir uma teoria do direito positivo, ou seja, das normas jurídicas postas (existentes). Diferentemente do direito natural, o direito positivo não se constitui como ordem ideal e perfeita, criada por forças divinas ou de qualquer forma transcendentes. O direito positivo não é capaz de expressar pretensos ideais absolutos de justiça. Trata-se de um direito humano, criado por homens e para os homens. É o nosso direito. O direito que regula a vida das pessoas. O direito que está nas leis, nos códigos e no cotidiano. Com essa advertência inicial, Kelsen separa as idéias de direito e de justiça. Eis uma de suas mais importantes lições: para que dada norma seja jurídica, não é necessário que também seja justa; basta-lhe reunir certas características formais. Ao contrário, se fundirmos os conceitos de justiça e de direito, corremos o inevitável risco de nos vermos subjugados por autoridades políticas que, uma vez instaladas no poder, nos obrigarão a aceitar como jurídicas - ou seja, obrigatórias - suas próprias crenças e valores "justos". A norma jurídica constitui a realidade que cabe ao jurista estudar, assim como o físico pesquisa fenômenos físicos e o sociólogo debruça-se sobre fatos sociais. O termo "norma" pode ser entendido como "ordem dirigida à conduta de outrem". Normas são, portanto, mandamentos, ou como prefere se expressar Kelsen, "sentidos de dever-ser". As normas indicam o que deve ser (Sollen) - aquilo que deve ser feito pelas pessoas e, indiretamente, o que deve ser evitado (por ser proibido) - e não o que efetivamente é (Sein). Se as coisas fossem como devem ser, não haveria necessidade de ordenamentos jurídicos coercitivos. Há vários tipos de normas: sociais, éticas, religiosas etc. As que nos interessam são as normas jurídicas. Se normas são comandos, aqueles postos pelas fontes criadoras de direito de determinado Estado são chamados de normas jurídicas. As normas jurídicas não são pedidos ou sugestões, mas sim ordens de observância obrigatória. E para que sejam obedecidas, são equipadas com um atributo especial chamado de sanção. Define-se sanção como a conseqüência do cumprimento ou do descumprimento da norma. No primeiro caso, temos as sanções premiais, ou seja, vantagens prometidas àqueles que cumprem os mandamentos normativos. Um bom exemplo de sanção premial (positiva) é a que concede incentivos fiscais às empresas que não poluem o meio ambiente. Contudo, as sanções mais comuns são as penalizadoras (negativas), que prevêem castigos para os que não cumprem os comandos normativos. Por exemplo: As empresas que poluem o meio ambiente devem pagar pesadas multas. Em ambos os casos, a finalidade visada pela norma é a mesma, qual seja, a preservação do meio ambiente. Entretanto, tal pode ser obtido de duas maneiras: prometendo uma recompensa àqueles que respeitarem a norma ou aplicando um castigo aos que a desobservarem. Kelsen nota que as normas jurídicas representam apenas uma pequena parcela do amplo universo normativo no qual estamos irremediavelmente inseridos. Assim, fazia-se necessário diferenciar as normas jurídicas das demais espécies normativas, sem o que não se poderia definir o direito, missão que Kelsen se impôs ao escrever a TPD. Ora, as normas jurídicas possuem uma característica especial que as particulariza diante das demais: a sanção. As normas religiosas, éticas e sociais também não possuem sanções? Sim, mas a sanção jurídico-normativa apresenta feição diversa das demais. Por um lado, trata-se de sanção não-transcendente, ou seja, opera os seus efeitos neste mundo e não no além, o que a afasta das normas religiosas, cujos castigos e recompensas se verificam, em tese, após a morte do indivíduo chamado a cumprir os comandos religiosos. Por outro lado, as sanções jurídicas são socialmente organizadas, ou seja, previstas e reguladas por um organismo central - o Estado -, que estabelece procedimentos objetivos para aplicá-las. Já as sanções acopladas às normas éticas e sociais são efetivadas de maneira descentralizada e difusa, pois não existe um órgão central que garanta, por meio de determinados procedimentos, a sua aplicação. Um exemplo: se alguém matar outrem, sofrerá a sanção prevista no art. 121 do Código Penal - reclusão de 6 a 20 anos -, dado que desobservou uma ordem geral de abstenção imposta pelo Estado, consistente na ordem: "não matarás". Já a situação do mentiroso afigura-se bem diferente da do homicida. O direito, de forma geral, não proíbe a mentira, salvo em algumas situações especiais. Nada obstante, existe uma norma ético-social do tipo "não mentirás". Tal mandamento não se sustenta com base na autoridade jurídico-estatal, mas sim graças a uma espécie de sentimento difuso de probidade e de honestidade que perpassa certas sociedades. Inexiste qualquer garantia quanto à sua aplicação, bem como quanto à sua intensidade, gradação, modo de concretização, autoridade aplicadora etc. Em suma: não há procedimentos objetivos que garantam a aplicação da sanção da norma social "não mentir". O castigo do mentiroso depende unicamente dos humores e dos sentimentos variáveis da sociedade, ao contrário da pena imposta ao homicida, aplicada pelos órgãos que compõem o sistema de persecução penal estatal, na medida e nas formas previstas anteriormente por outras normas jurídicas. O direito regula a sua própria aplicação: há normas jurídicas que cuidam da criação e da concretização de outras normas jurídicas. As normas jurídicas que aplicam sanções são chamadas de primárias. Aquelas que regulam as primeiras são as secundárias. As normas jurídicas se apresentam relacionadas umas às outras de modo hierárquico e piramidal, existindo normas superiores e normas inferiores. Estas últimas são as mais numerosas e encontram-se na base da pirâmide jurídico-normativa, apresentando caráter particular, como a sentença judicial e o contrato, válidas apenas para pessoas específicas. A generalidade normativa aumenta à medida que nos dirigimos ao ápice da pirâmide jurídico-normativa. Acima de todas as normas do ordenamento encontra-se a Constituição, norma de caráter generalíssimo e que constitui o fundamento de validade positivo das demais normas do sistema. As normas inferiores somente são válidas quando não se contrapõem às que lhe são superiores. A norma jurídica é então um sentido objetivo de dever-ser, já que, para ser válida, se fundamenta em algo objetivamente posto (outra norma) e não na vontade psíquico-subjetiva de quem as editou. Neste último caso tratar-se-ia de um sentido subjetivo de dever-ser, ou seja, um comando baseado unicamente na vontade do indivíduo. Pois bem, acima da Constituição não há qualquer outra norma jurídico-positiva, apenas a norma fundamental (Grundnorm), um tipo de norma jurídica pensada (pressuposição lógico-hipotética) que serve apenas para "fechar" o sistema, evitando assim a recorrência infinita (reductio ad infinitum) da pergunta acerca do fundamento de validade das normas jurídicas. A teoria da norma fundamental constitui uma das mais polêmicas e complexas criações de Kelsen, não sendo possível abordá-la aqui devido à limitação do espaço. Fica aí uma sugestão de aprofundamento e de estudo para, quem sabe, discutirmos no futuro.

 Referências:
 Vasconcelos, V. V. A Crítica da Teoria Pura do Direito em Hans Kelsen: os objetivos do Direito e as normas primárias e secundárias. Universidade Federal de Minas Gerais. 2004.



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